Divagações sem fim esperando por respostas.
Uma busca sem rumo por certezas improváveis:
Dores, cores, amores, rancores.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Hope

Londres, 22 de dezembro de 2015.
São quatro horas da tarde e o céu já está escuro. Não existem estrelas visíveis mas luzes de Natal em todas as ruas e lojas.
Ela caminha serenamente em direção a Covent Garden para as últimas compras de Natal.
Aqueles presentes mais difíceis, para os que estão longe dos olhos.
Os artistas de rua ainda a fascinam e ela perde uns 15 minutos e uns tragos em um cigarro. Com violinos a punho, eles arriscam um All you need is love e ela pensa: Do I?
Covent Garden, assim como tudo ali parece ter parado no tempo. Ao contrário dela.
Botas pretas de cano alto e uma meia de lã verde escuro. Um vestido de lã preto, casaco cinza até os joelhos e o cachecol laranja que a acompanhou nas primeiras viagens sozinha.
Ela nunca mais conseguiu parar.
Ali já há tanto tempo, ela parece não se incomodar mais com sua solidão. Se em São Paulo era fácil ser só, aqui ela parecia tirar de letra.
Tudo a fascinava e ela estava sempre ocupada demais em seus pensamentos que não percebia que atraia olhares.
O cabelo longo, preso num coque alto, deixava à mostra a última tatuagem, feita em Paris no verão: um girassol.
Para que existisse sol naqueles dias cinzas. Mesmo cinza sendo sua cor favorita, era preciso quebrá-la.
Entra na loja de artigos indianos pensando na echarpe que enviará a mãe. Aquela que passaria sem a companhia mais um Natal.
Quando ele a deixou pela última vez, ela se distraiu nas viagens. Não sendo suficiente, ela deixou tudo pra trás e se confortou na distância e na solidão.
No café do andar inferior ela abre seu Orgulho e Preconceito pela décima vez e fuma mais um cigarro.
Pensa em pedir um vinho mas acha que seria triste demais beber sozinha na véspera de Natal.
Não sinta pena dela.
Ela faz o que gosta: ensina inglês para crianças refugiadas do leste europeu e canta numa banda de rock. Rock inglês sempre a fascinou. Quem disse que sonhos não se realizam?
É as quartas-feiras que eles se apresentam num pub em East Putney chamado Fox and the Snow. E era uma quarta-feira.
No caminho do metrô ela pára em um orelhão e liga para a mãe. Mãe que tanto a pedia para voltar mas que entendia sua necessidade de refúgio.
Entra na estação e desce pela escada rolante reparando em cada um daqueles que sobem ao seu lado: os rostos em Londres não são como os de São Paulo. Não existem tantos sorrisos ou abraços e fala-se pouco e baixo.
Isso a faz sentir-se normal, camuflada entre outras mil faces e corações frios.
Ele a deixara pela terceira vez. Ela nunca o conhecera de verdade, mas havia se entregado por inteira, tantas e tantas vezes. Ele não tinha coragem de ficar e nem ela de partir.
Mas um dia a coragem chegou, embrulhada pra presente junto com a demissão.
Ela entra no pub livra-se do cachecol e do casaco e cumprimenta o segurança, o barman, o caixa. Sempre havia sido assim, em todos os bares que havia frequentado. Na cidade natal, na faculdade, nas viagens. Ali ela era apenas mais uma misturada em rostos vermelhos falantes e consumidores enlouquecidos de álcool.
Não fuma-se mais em lugares fechados na Inglaterra.
Ali ela também se solta. Toma suas taças de vinho e sobe ao palco para juntar-se a Adam, Emma e Greg. Juntos eles são os Creeps.
Com a confiança de uma cantora profissional ela canta por 40 minutos até o intervalo.
Antes disso, no meio de Candy, ele lhe chama a atenção.
Chama a atenção pois não é alto, nem loiro e muito menos tem os olhos claros.
Ele usa um cachecol vermelho e blusa se lã verde. Aquela combinação Amelie Poulin sempre a agradou. Ele pede algo no bar e senta-se a sua frente.
Ela não consegue desviar o olhar.
Ele prende os cabelos compridos num rabo de cavalo e traz a barba por fazer. Tem um nariz comprido que a impede de descobrir sua etnia.
Ele a aplaude quando a banda pára e ela desce do palco sem saber pra onde ir.
Esse sentimento a atormenta. Bate um medo de sofrer tudo outra vez.
Mas ela não consegue ignorar aquele que ousa fazer com que ela queira sair de seu universo particular e dar uma volta.
Ela precisa de mais um vinho.
Ele usa all-star e uma calça jeans surrada. É bem magro e não deve ter mais que um metro e setenta e cinco.
Ele também fica sozinho e bate os dedos na mesa como se esperasse alguém.
Felizmente esse alguém não chega e ela volta ao palco.
Solta os cabelos e canta Revolution.
Revolution é aquela música que toda banda tem, o ápice do show. A música que arranca aplausos de qualquer platéia.
Ele não tira os olhos dela durante toda a música.
Ela quase sorri pra ele ao final.
O pub está cheio. Lá fora chove e tocam o sino para a última pedida.
Ela desce rápido do palco e corre ao balcão. Pede mais uma taça de vinho e tira uma nota de 20 pounds pra pagar.
Nisso ele diz: No, please, this one is on me. E sorri pra ela.
Aquele sotaque, o olhar. Ambos sabem da onde vem.
- Vocês têm talento. Ótima playlist. Prazer, Pablo.
Pablo voltou ao Brasil quinze dias depois para produzir um show. Ele chegou em sua casa na Bela Vista, jogou suas malas num canto e foi dormir. Na manhã seguinte ele sorriu sozinho e andou até a padaria para tomar um café.
O show é um sucesso.
Um mês mais tarde ela treme ao pisar em São Paulo com seu all-star branco, o mesmo que a acompanhou na ida. Superstição.
Ela sai do portão de embarque e já tira o casaco cinza. Faz quarenta graus.
Óculos no rosto para protegê-la de olhares não bem-vindos.
Ela se sente sozinha. Todos os pensamentos ruins estão de volta.
Ela se sente tola por ter voltado. Ela se sente frágil. Ela sente que vai chorar.
Ele chega com um girassol. Sorriso gigante, braços abertos, camiseta do Che.
Ela diz: Pablo!
E ele: São Paulo sentiu saudades, bonita.
O sol lá fora judia. Eles andam com todas as malas até o carro.
No rádio alguma trilha sonora conhecida. Mas agora pouco importava.
Abriu a janela até o fim e sentiu o vento fresco no rosto. Deu um suspiro grande misturando todos os sentimentos possíveis.
Foi quando sentiu a mão quente na sua.
Foi quando ligou para sua mãe.

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